28/03/2024

A confiança no Poder Público como legitimação para a execução fiscal administrativa

Por: Eduardo Salusse / Fio da Meada
Fonte: Valor Econômico
O Projeto de Lei nº 2481/2022 pretende instituir a execução administrativa
do crédito tributário de até 60 salários mínimos, com poderes coercitivos e
expropriatórios, observando regras e medidas de controle específicas. A
propósito deste tema, tive a oportunidade de explanar, no recente I Congresso
Nacional do Contencioso Tributário da FGV Direito SP, que o debate deve ser
orientado pela tríade da “eficiência”, da “confiança” e da “legalidade”.
No artigo anterior desta coluna, a “eficiência” foi apontada como elemento
essencial, relembrando, em apertada síntese, que o Tema 1.184 julgado pelo
Supremo Tribunal Federal (STF), regulamentado pela Resolução CNJ nº
547/2024, definiu a necessidade de extinção de execuções de baixo valor (R$
10 mil) com baixa expectativa de recuperabilidade.
Parte-se da premissa de que, identificadas ineficiências no nosso sistema, a
correção de rumos deixa de ser uma faculdade, mas um dever do legislador.
Primeiro porque ineficiências invariavelmente representam violações reflexas a
outros direitos e garantias individuais. Segundo porque o que é ineficiente tende
a comprometer a viabilidade existencial do próprio objeto, seja uma espécie
viva, um sistema jurídico ou uma norma isolada. É condição para o progresso
de uma sociedade em transformação, como uma nítida característica darwiniana
pela própria preservação da espécie. É consenso que as execuções fiscais são a
representação máxima da ineficiência em nosso sistema judicial, com baixíssimo
índice de sucesso e elevada contribuição para a sobrecarga dos nossos tribunais.
Adentrando ao elemento “confiança”, há fundamentado receio social sobre a
ausência de freios do poder público arrecadatório, o que milita naturalmente
contra qualquer iniciativa legislativa tendente a ampliar as possibilidades de
cobrança do crédito tributário para além das já existentes medidas persuasivas
(protestos de dívida ativa, negativação do devedor, averbação da dívida em
registros imobiliários, vedação de contratar com bancos oficiais e com o poder
público, restrição à distribuição de dividendos e outros).
É notável e exitoso o trabalho desenvolvido pela Procuradoria da Fazenda
Nacional, seguida de perto pela Procuradoria do Estado de São Paulo e outras,
de aproximação com os contribuintes e desenvolvimento de medidas
alternativas para solução de conflitos, especialmente o fortalecimento da
cobrança administrativa, os negócios jurídicos processuais, o regime
diferenciado de cobrança do crédito tributário, os pedidos de revisão de débitos
inscritos, a transação e outros.
Todavia, na percepção do contribuinte, o órgão administrativo fazendário
(Receita Federal do Brasil ou Secretarias de Fazenda), assim como os seus
órgãos de julgamento, são todos componentes da “administração tributária”. E
neste ponto o caldo da confiança entorna.
Para falarmos sobre o que os franceses chamam de “pré-consentimento
social”, a confiança da sociedade no poder público afigura-se como elemento
essencial. É necessário quase que uma terapia em grupo na relação entre Fisco
e contribuinte. Não há a menor perspectiva de se obter um pré-consentimento
social a qualquer iniciativa que atribua à administração tributária um poder
persecutório patrimonial do contribuinte devedor sem que haja uma irrestrita
confiança na autoridade que o fará. Esta confiança não se refere, propriamente,
à fase da cobrança da dívida ativa, mas à própria dívida ativa.
Lembremos da “inconstitucionalidade útil” relatada pelo ministro Sepúlveda
Pertence, quando ainda ministro do STF na Adin nº 2, tendo denunciado
iniciativa de autoridades fazendárias de carreira propondo a edição de um
Decreto-lei absolutamente inconstitucional ao argumento de que outros
tributos inconstitucionais tinham uma margem de arrecadação de 85%. Na
mesma esteira, lembremos Saulo Ramos, na obra Código da Vida, afirmando
que determinado funcionário do Ministério da Fazenda tinha dados
demonstrando que apenas 30% dos contribuintes questionavam o tributo
inconstitucional e que os processos ajuizados demorariam 10 anos para
finalizar. E estas realidades faziam valer a pena.
E, infelizmente, isto não é coisa do passado.
O STF passou a modular efeitos de decisões, especialmente quando declarada
a inconstitucionalidade de determinado tributo. Adota a praxe de reconhecer a
inconstitucionalidade apenas da data do julgamento para frente – e às vezes até
a partir de um futuro próximo – fazendo com que todo o período que antecedeu
a declaração de inconstitucionalidade, de alguma forma, convivesse com uma
convalidada inconstitucionalidade. O retorno do maior dos incentivos à
inconstitucionalidade útil é um péssimo exemplo para o país. As autoridades
não terão mais desincentivos para criar exações inconstitucionais. E não para
por aí. Mesmo quando algum indébito há a recuperar, não há cerimônia do
Poder Público em dificultar ou restringir a restituição dos valores indevidos,
seja inadimplindo ou postergando precatórios, restringindo o uso do instituto
da compensação (como a recente Medida Provisória nº 1.202/2023), sempre
ancorados em imorais argumentos consequencialistas que protegem o órgão
gastador de dinheiro alheio.
Não é aceitável que a Fazenda Nacional cobre por quase 20 anos o PIS/Cofins
sobre ICMS, mesmo sabendo ser inconstitucional há tempos, e cria restrições
para devolvê-lo. Outros exemplos não faltam.
A postura, com algumas exceções, não ajuda na reconstrução desta tão
arranhada percepção que os contribuintes têm do poder público. Ninguém
negocia ou consente em dar poderes em quem não confia ou no que lhe parece
injusto. A lei mal feita e mal escrita, regulamentações que exorbitam a legalidade,
interpretações tendenciosas, manifestações públicas de ataque aos contribuintes
e julgamentos enviesados quebram a confiança em várias vertentes.
As crianças desenvolvem a noção do que é justo e injusto a partir de 4 ou 8
anos de idade, segundo coluna de Javier Sampedro, no jornal espanhol El País.
Gaston Jèze, acadêmico e professor de direito público da Faculdade de Direito
de Paris, ensinou que “pode-se certamente afirmar que, em todos países do
mundo, mesmo os mais civilizados e nos quais o nível moral é bem elevado, os
contribuintes de esforçarão para dissimular perante o fiscal tudo o que
puderem. Indivíduos honestos não fornecerão declarações exatas, mas a que lhe
fizer pagar a soma que ele acredita ser sua justa parte do imposto; as torpezas
não terão nenhum limite”.
Enfim, há um grande trabalho pela frente, mas é preciso que todas as partes
interessadas estejam remando no mesmo sentido, sentando nos bancos da
terapia e da autoanálise. Assim, justificada pela eficiência, legitimada pela
confiança e amparada na legalidade, poderemos avançar para novos
mecanismos de execução administrativa de crédito tributário mais do que
necessários.